Desde a Rússia, a produtividade infinitamente crescente e a introdução à indolência como arma de resistência – Um Tributo a Albert Cossery.
Lembro-me com saudade de uma conversa no Reviravolta no Campo das
Cebolas, talvez em 2013, sobre a produtividade. No momento eu e o ilustre
camarada e amigo M. discutíamos o assunto, num momento de crise e austeridade,
dois indivíduos que achavam saber muito da problemática em questão discutiam o
que ia acontecer à produtividade em Portugal e demais países da área Euro,
lembro-me de refletir sobre o assunto e referir que a busca crescente por produtividade
era destruidora, senti uma preguiça ao imaginar o cansaço da busca permanente pelo
aumento da produtividade, como a busca de algo sem fim, como uma morte sem
redenção.
Pensava eu que este assunto tinha ficado por ali, uma simples e banal conversa
de dois amigos e colegas a beber uma cerveja depois do trabalho. Enganei-me
totalmente, esta conversa foi uma semente que mudou muito do meu pensamento
sobre como atuar contra abusos de poder e pensamentos únicos. Isto aconteceu
porque pelo meu aniversário, o camarada M. surpreende-me e oferece-me um livro
de um tal de Albert Cossery, com o título “ A Violência e o Escárnio”, autor
para mim desconhecido à data. O M. teve o cuidado de dizer que este autor era o
indicado para mim, pois muitas das minhas reflexões iam ao encontro das do Cossery,
na altura já me senti lisonjeado com o comentário do M., hoje sinto-me exponencialmente
mais.
Até essa data as minhas principais referências bibliográficas situavam-se
na Rússia, Dostoiévski e também Gogol, isto apesar de já ter lido Kafka, Marcel
Proust, James Joyce, Allan Poe, Céline, Jack London, Kurt Vonnegut e Bukowski,
todos bons e com influência no meu pensamento, contudo, o peso de “O Crime e
Castigo” e de “Os irmãos Karamazóv” era demasiado evidente e sobrepunha-se.
O Cossery entra na minha vida pela mão do M., “A Violência e o Escárnio”,
numa época de manifestações violentas contra a austeridade, elucidou-me sobre o
que se passava, um teatro de pessoas demasiado focadas em problemas criados por
humanos para que os humanos se mantivessem entretidos a ser parte do teatro.
Cossery promove neste livro o papel da indolência como arma de resistência ao
invés das pesadas táticas do anarquismo, chega a mostrar que o anarquismo é
outra face do poder, e que estas duas faces só serão destruídas com algo novo,
que é o comportamento indolente face aos comportamentos criados e recriados
pelos homens para se manterem ocupados a gastar a vida de uma forma parva.
Em “A Violência e o Escárnio” o grupo dos indolentes resistentes ao
invés de querer através de um atentado terrorista matar o Presidente de uma
determinada região, atentado que está a ser preparado por um grupo de
anarquistas, promove um cartaz que é espalhado pela cidade onde esse mesmo
Presidente e líder é elogiado de uma forma tão exagerada e exaustiva que causa dúvida
aos seus mais acérrimos apoiantes acerca da bondade dos elogios, este ato de
escárnio, torna-se numa poderosa arma de resistência, uma vez que também chega a quem
apoia o poder, deixando-os confusos pois e a questionar a bondade dos elogios
colocando-os numa situação de dúvida perante a tal grande bondade do seu amado líder.
A indolência e o escárnio são armas de resistência que cada um de nós
possui, só temos de ser suficientemente lúcidos para as usar em cada momento em
que essa ação seja necessária.
Foi fácil ficar apaixonado pela escrita e filosofia do Cossery, pesquisei
toda a sua obra, só nove livros, ele mesmo era um praticante da indolência, recusava-se
a escrever mais que uma curta frase por dia, a sua cuidada reflexão levou-o a
títulos, personagens, enredos, humor e narração magníficas. Em suma, obras magníficas
como: Mandriões no Vale Fértil; Mendigos e Altivos; Casa da Morte Certa, Os
Homens Esquecidos de Deus; Uma Conjura de Saltimbancos; Uma Ambição no Deserto;
As Cores da Infâmia.
Acabei de ler toda a sua brilhante obra há dois anos, a sua indolência
deixou-me órfão de mais linhas suas. Este texto serve para agradecer ao meu
amigo e camarada M. por me ter introduzido este autor, este farol da lucidez, e, para que outros, futuramente também se sintam como eu, caso os consiga levar a
ler este brilhante pensador.