sexta-feira, 5 de maio de 2017

Desde a Rússia, a produtividade infinitamente crescente e a introdução à indolência como arma de resistência – Um Tributo a Albert Cossery.

Desde a Rússia, a produtividade infinitamente crescente e a introdução à indolência como arma de resistência – Um Tributo a Albert Cossery.


Lembro-me com saudade de uma conversa no Reviravolta no Campo das Cebolas, talvez em 2013, sobre a produtividade. No momento eu e o ilustre camarada e amigo M. discutíamos o assunto, num momento de crise e austeridade, dois indivíduos que achavam saber muito da problemática em questão discutiam o que ia acontecer à produtividade em Portugal e demais países da área Euro, lembro-me de refletir sobre o assunto e referir que a busca crescente por produtividade era destruidora, senti uma preguiça ao imaginar o cansaço da busca permanente pelo aumento da produtividade, como a busca de algo sem fim, como uma morte sem redenção.

Pensava eu que este assunto tinha ficado por ali, uma simples e banal conversa de dois amigos e colegas a beber uma cerveja depois do trabalho. Enganei-me totalmente, esta conversa foi uma semente que mudou muito do meu pensamento sobre como atuar contra abusos de poder e pensamentos únicos. Isto aconteceu porque pelo meu aniversário, o camarada M. surpreende-me e oferece-me um livro de um tal de Albert Cossery, com o título “ A Violência e o Escárnio”, autor para mim desconhecido à data. O M. teve o cuidado de dizer que este autor era o indicado para mim, pois muitas das minhas reflexões iam ao encontro das do Cossery, na altura já me senti lisonjeado com o comentário do M., hoje sinto-me exponencialmente mais.

Até essa data as minhas principais referências bibliográficas situavam-se na Rússia, Dostoiévski e também Gogol, isto apesar de já ter lido Kafka, Marcel Proust, James Joyce, Allan Poe, Céline, Jack London, Kurt Vonnegut e Bukowski, todos bons e com influência no meu pensamento, contudo, o peso de “O Crime e Castigo” e de “Os irmãos Karamazóv” era demasiado evidente e sobrepunha-se.

O Cossery entra na minha vida pela mão do M., “A Violência e o Escárnio”, numa época de manifestações violentas contra a austeridade, elucidou-me sobre o que se passava, um teatro de pessoas demasiado focadas em problemas criados por humanos para que os humanos se mantivessem entretidos a ser parte do teatro. Cossery promove neste livro o papel da indolência como arma de resistência ao invés das pesadas táticas do anarquismo, chega a mostrar que o anarquismo é outra face do poder, e que estas duas faces só serão destruídas com algo novo, que é o comportamento indolente face aos comportamentos criados e recriados pelos homens para se manterem ocupados a gastar a vida de uma forma parva.

Em “A Violência e o Escárnio” o grupo dos indolentes resistentes ao invés de querer através de um atentado terrorista matar o Presidente de uma determinada região, atentado que está a ser preparado por um grupo de anarquistas, promove um cartaz que é espalhado pela cidade onde esse mesmo Presidente e líder é elogiado de uma forma tão exagerada e exaustiva que causa dúvida aos seus mais acérrimos apoiantes acerca da bondade dos elogios, este ato de escárnio, torna-se numa poderosa arma de resistência, uma vez que também chega a quem apoia o poder, deixando-os confusos pois e a questionar a bondade dos elogios colocando-os numa situação de dúvida perante a tal grande bondade do seu amado líder.

A indolência e o escárnio são armas de resistência que cada um de nós possui, só temos de ser suficientemente lúcidos para as usar em cada momento em que essa ação seja necessária.

Foi fácil ficar apaixonado pela escrita e filosofia do Cossery, pesquisei toda a sua obra, só nove livros, ele mesmo era um praticante da indolência, recusava-se a escrever mais que uma curta frase por dia, a sua cuidada reflexão levou-o a títulos, personagens, enredos, humor e narração magníficas. Em suma, obras magníficas como: Mandriões no Vale Fértil; Mendigos e Altivos; Casa da Morte Certa, Os Homens Esquecidos de Deus; Uma Conjura de Saltimbancos; Uma Ambição no Deserto; As Cores da Infâmia.


Acabei de ler toda a sua brilhante obra há dois anos, a sua indolência deixou-me órfão de mais linhas suas. Este texto serve para agradecer ao meu amigo e camarada M. por me ter introduzido este autor, este farol da lucidez, e, para que outros, futuramente também se sintam como eu, caso os consiga levar a ler este brilhante pensador.