Tinha as mãos tortas caídas no regaço,num abandono de doente.
As
pernas, um nó desde a nascença, empoleiradas nos pedais do seu carro de
aleijado.
Fazia
frio e abrindo a boca num esgar que mais parecia de dor que de outra coisa,
espirrou ruidosamente.
Tinha
de subir a rua à força de braços porque não lhe deram um motor.
Fazia
aquilo todos os dias, era bem melhor do que ficar na cama com os pés de fora e
com gelo na ponta dos dedos.
Depois
do esforço pedia o seu vinhinho do costume, na tasca do costume e ele tinha
quase a certeza de que lho serviam sempre na mesma taça, nojo das suas babas
talvez, não era problema dele.
“…não
devia ser permitido tanto frio. Pelo menos a gente como eu, não é justo que
soframos o mesmo frio que os que têm casacos, mas que direito é que tenho eu de
pedir nada…”, calou-se. Só havia mais duas pessoas com cervejas à frente e
sentadas nas suas mesas nem tinham olhado para ele.
Ficava
ali até ao anoitecer, com os olhos fixos na janela, com a ranheta a pingar-lhe
do nariz, esquecida, escorregando depois pela boca torta.
“…vamos
fechar, ouça lá!, está a ouvir? Vamos fechar, vá para casa, ande…”
Custava-lhe
a ouvir, virou devagar a cabeça contrariado e olhou de frente para o dono que
tornou a repetir: “…vá para casa que tenho de fechar a loja…”.
(“…que
casa?” – pensou), empurrou as rodas e saiu.
À
noite era mais fácil andar na estrada, não tinha que se preocupar com os carros
que de dia quase o cuspiam de encontro às casas, nem com a luz que lhe feria os
olhos, já podres.
Faltava
pouco para virar a esquina e encontrar a rua que descia quase em vertical.
O
prazer de cada noite
Há
muito castrado pelo capricho de uma cadela que não gostava de homens em cima,
terminou a relação com uma mordidela certeira.
À
noite então, restava-lhe a rua.
Desde
o cimo via-se o fim, lá no fundo, todos os dias à espera dele.
Respirou
e lançou-se contendo o ar.
De
olhos fixos em nada, via as portas a passar, via as janelas a passar e os
telhados e as pessoas e lutava contra a morte, que desesperada, tentava chegar
à frente.
E as
portas continuavam e janelas e luzes e o vento cortava-lhe a cara, feria-lhe os
lábios que sangravam, obrigava-o a abrir a boca e afogar o grito de prazer que
desde o princípio se lhe tinha colado à pele, penetrado o corpo e os ossos.
E
então deixava de ouvir, um vazio cheio de sons enchia-lhe a cabeça e fazia-lhe
explodir os ouvidos, a noite tornava-se branca e toda a cor num feixe de luz,
como uma navalha de dois gumes, desfazia-lhe os olhos.
Onde
anos atrás se encontrava a diferença entre ele e uma mulher, hoje e nesse
instante, todas as noites, formava-se o prazer, em bruto e pouco a pouco, até
vomitar, vomitar tudo, até sair tudo pela boca fora, todo o nojo de ser o que
era.
E
ficava limpo, transparente, leve
E
passado o fim da rua deixava-se levar pela força que ainda empurrava as rodas e
parava à porta do barraco.
Tinham
deixado no parque, um tronco nu de mulher, em mármore, era uma escultura
enorme, que no entanto, privada de pernas, só podia olhar os homens de cintura
para baixo.
O
aleijado, de quando em vez, passava as tardes no parque a ver as criancinhas
saltar à corda, a ver as saias subir e descer, a ver, enfim.
Deparou
então, com os olhos de mármore da mulher sem pernas, que por estar ele sentado,
o fixava bem nos olhos e não noutras partes.
Assustou-se
e virou a cara.
“…estava
a olhar para mim!!...para mim?...” encarou-a de novo e a frieza da pedra
congelou-lhe o medo nos olhos.
Ao
tentar fugir dali a toda a pressa, atropelou no caminho uma boneca caída que ficou
sem cabeça e logo no ato à mãe da dona da boneca, acertou-lhe com a saca das
compras no pescoço, enquanto lhe ficava atravessada na garganta a imagem de
mármore
Rolando
tão depressa quanto a tremura dos braços lhe permitia, dirigiu-se para a tasca,
tinha os lábios secos, as mãos suadas, uma sensação no fundo do estômago
fazia-o suspeitar que o almoço não ficaria muito tempo…
“…que
merda de sabor…” limpou com a manga da camisa o fio de bilis que lhe corria
pelo queixo.
Agora
mais calmo, pensava que não era tão urgente chegar à tasca, pensava em voltar
ao parque e enfrenta-la, demorou o resto da tarde a decidir-se, parado, debaixo
do viaduto com os olhos fechados, ponderava.
Então,
como quem não quer nada, começou a dar voltas e voltas nas ruas pequenas dos
bairros da cidade, passando duas vezes, mais vezes ainda, pelo mesmo sitio, até
que se encontrou de novo no parque.
Desta
vez a porta estava fechada, passavam já das dez da noite. Ela lá estava, de
nariz levantado, como quem tivesse cheirado a homem. Aquele olhar desafiante
era mais do que podia suportar, o seu sangue, que corria a ferver pelo corpo,
fazia latejar a frente. Mas não havia modo de entrar no parque, a raiva saia em
forma de espuma pela boca, agarrou-se então, como pode, aos barrotes do portão
e começou a abana-lo, com tanta força que parecia querer arranca-lo do sítio e
era isso o que ele desejava, destruir o obstáculo que o separava dela.
Não
aguentava mais, começou aos uivos, os olhos esbugalhados, a língua de fora, as
veias que quase lhe rebentavam no pescoço.
O
guarda noturno chegou à esquina e sentiu o coração subir-lhe à boca, paralisado
pelo terror não era capaz de andar, o que estava à entrada do parque não podia
ser humano, mas então, uma brisa que trazia consigo o espírito do herói que em
tempos fora na guerra colonial, colou-se-lhe à pele e desatou a correr em
direção ao parque com o grito de ataque a servir-lhe de escudo.
O
aleijado não teve tempo de ver o que o atacava, só sentiu a cabeça a estalar e
depois o calor do inferno a queimar-lhe o cérebro e depois o gelo da noite a
fechar-lhe as pálpebras e depois nada.
O
guarda acordou então da sua batalha e viu estendido no chão o que parecia o
corpo dum homem:”…merda, matei o gajo!”, mas não, o aleijado ainda respirava,
pegou nele como um fardo morto, subiu-o ao carro e empurrou-o na direção da rua
escura…