quinta-feira, 14 de maio de 2015

O CASAL

Era um dia entre o inverno e a primavera, de manhã.
Ela vestia uma saia, muito acima do joelho, de fazenda aos quadros, cinzenta e preta.
Uma saia justa, que deixava perceber o movimento do rabo.
Calçava botas, pretas, que lhe tapavam os tornozelos.
E meias de mousse cor-da-pele, enroladas à altura do joelho e seguras com um elástico, preto.
Os pelos das pernas, também, pretos, furavam por entre as malhas da mousse.
A camisola era azul-marinho, de malha, manga comprida, com um buraco no cotovelo e cheia de borboto.
O decote, em bico, mostrava o triângulo de pele.
O cabelo, comprido, levava-o amarrado em rabo-de-cavalo.
A carteira grande, e, preta, arrumada debaixo dum braço, o outro, mexia energicamente, acompanhando as passadas.
Ele seguia detrás.
Calçava sapatos castanhos e calças cinzentas com óleo nos fundos.
Um casaco, preto, e camisola, não sei.
A mão direita no ombro dela, o braço esticado, arrastava a perna esquerda sem poder dobrar o joelho.
O braço esquerdo, pegado ao corpo.
Ela parecia não se importar com a dificuldade dele para andar e apressava o passo.
Ele, sem protestar, corria detrás, como se tivesse a mão pressa ao ombro dela.
Em volta, estorvava a marcha, uma menina de uns sete anos, normal.

Apesar das aparências, dum olhar menos atento, ela, ao subirem a rampa, esperou por ele.

SEM NOME

Tinha as mãos tortas caídas no regaço,num abandono de doente.
As pernas, um nó desde a nascença, empoleiradas nos pedais do seu carro de aleijado.
Fazia frio e abrindo a boca num esgar que mais parecia de dor que de outra coisa, espirrou ruidosamente.
Tinha de subir a rua à força de braços porque não lhe deram um motor.
Fazia aquilo todos os dias, era bem melhor do que ficar na cama com os pés de fora e com gelo na ponta dos dedos.
Depois do esforço pedia o seu vinhinho do costume, na tasca do costume e ele tinha quase a certeza de que lho serviam sempre na mesma taça, nojo das suas babas talvez, não era problema dele.
“…não devia ser permitido tanto frio. Pelo menos a gente como eu, não é justo que soframos o mesmo frio que os que têm casacos, mas que direito é que tenho eu de pedir nada…”, calou-se. Só havia mais duas pessoas com cervejas à frente e sentadas nas suas mesas nem tinham olhado para ele.
Ficava ali até ao anoitecer, com os olhos fixos na janela, com a ranheta a pingar-lhe do nariz, esquecida, escorregando depois pela boca torta.
“…vamos fechar, ouça lá!, está a ouvir? Vamos fechar, vá para casa, ande…”
Custava-lhe a ouvir, virou devagar a cabeça contrariado e olhou de frente para o dono que tornou a repetir: “…vá para casa que tenho de fechar a loja…”.
(“…que casa?” – pensou), empurrou as rodas e saiu.
À noite era mais fácil andar na estrada, não tinha que se preocupar com os carros que de dia quase o cuspiam de encontro às casas, nem com a luz que lhe feria os olhos, já podres.
Faltava pouco para virar a esquina e encontrar a rua que descia quase em vertical.
O prazer de cada noite
Há muito castrado pelo capricho de uma cadela que não gostava de homens em cima, terminou a relação com uma mordidela certeira.
À noite então, restava-lhe a rua.
Desde o cimo via-se o fim, lá no fundo, todos os dias à espera dele.
Respirou e lançou-se contendo o ar.
De olhos fixos em nada, via as portas a passar, via as janelas a passar e os telhados e as pessoas e lutava contra a morte, que desesperada, tentava chegar à frente.
E as portas continuavam e janelas e luzes e o vento cortava-lhe a cara, feria-lhe os lábios que sangravam, obrigava-o a abrir a boca e afogar o grito de prazer que desde o princípio se lhe tinha colado à pele, penetrado o corpo e os ossos.
E então deixava de ouvir, um vazio cheio de sons enchia-lhe a cabeça e fazia-lhe explodir os ouvidos, a noite tornava-se branca e toda a cor num feixe de luz, como uma navalha de dois gumes, desfazia-lhe os olhos.
Onde anos atrás se encontrava a diferença entre ele e uma mulher, hoje e nesse instante, todas as noites, formava-se o prazer, em bruto e pouco a pouco, até vomitar, vomitar tudo, até sair tudo pela boca fora, todo o nojo de ser o que era.
E ficava limpo, transparente, leve
E passado o fim da rua deixava-se levar pela força que ainda empurrava as rodas e parava à porta do barraco.
Tinham deixado no parque, um tronco nu de mulher, em mármore, era uma escultura enorme, que no entanto, privada de pernas, só podia olhar os homens de cintura para baixo.
O aleijado, de quando em vez, passava as tardes no parque a ver as criancinhas saltar à corda, a ver as saias subir e descer, a ver, enfim.
Deparou então, com os olhos de mármore da mulher sem pernas, que por estar ele sentado, o fixava bem nos olhos e não noutras partes.
Assustou-se e virou a cara.
“…estava a olhar para mim!!...para mim?...” encarou-a de novo e a frieza da pedra congelou-lhe o medo nos olhos.
Ao tentar fugir dali a toda a pressa, atropelou no caminho uma boneca caída que ficou sem cabeça e logo no ato à mãe da dona da boneca, acertou-lhe com a saca das compras no pescoço, enquanto lhe ficava atravessada na garganta a imagem de mármore
Rolando tão depressa quanto a tremura dos braços lhe permitia, dirigiu-se para a tasca, tinha os lábios secos, as mãos suadas, uma sensação no fundo do estômago fazia-o suspeitar que o almoço não ficaria muito tempo…
“…que merda de sabor…” limpou com a manga da camisa o fio de bilis que lhe corria pelo queixo.
Agora mais calmo, pensava que não era tão urgente chegar à tasca, pensava em voltar ao parque e enfrenta-la, demorou o resto da tarde a decidir-se, parado, debaixo do viaduto com os olhos fechados, ponderava.
Então, como quem não quer nada, começou a dar voltas e voltas nas ruas pequenas dos bairros da cidade, passando duas vezes, mais vezes ainda, pelo mesmo sitio, até que se encontrou de novo no parque.
Desta vez a porta estava fechada, passavam já das dez da noite. Ela lá estava, de nariz levantado, como quem tivesse cheirado a homem. Aquele olhar desafiante era mais do que podia suportar, o seu sangue, que corria a ferver pelo corpo, fazia latejar a frente. Mas não havia modo de entrar no parque, a raiva saia em forma de espuma pela boca, agarrou-se então, como pode, aos barrotes do portão e começou a abana-lo, com tanta força que parecia querer arranca-lo do sítio e era isso o que ele desejava, destruir o obstáculo que o separava dela.
Não aguentava mais, começou aos uivos, os olhos esbugalhados, a língua de fora, as veias que quase lhe rebentavam no pescoço.
O guarda noturno chegou à esquina e sentiu o coração subir-lhe à boca, paralisado pelo terror não era capaz de andar, o que estava à entrada do parque não podia ser humano, mas então, uma brisa que trazia consigo o espírito do herói que em tempos fora na guerra colonial, colou-se-lhe à pele e desatou a correr em direção ao parque com o grito de ataque a servir-lhe de escudo.
O aleijado não teve tempo de ver o que o atacava, só sentiu a cabeça a estalar e depois o calor do inferno a queimar-lhe o cérebro e depois o gelo da noite a fechar-lhe as pálpebras e depois nada.
O guarda acordou então da sua batalha e viu estendido no chão o que parecia o corpo dum homem:”…merda, matei o gajo!”, mas não, o aleijado ainda respirava, pegou nele como um fardo morto, subiu-o ao carro e empurrou-o na direção da rua escura…


domingo, 10 de maio de 2015

As minhas portas da perceção

Há dias em que a realidade que vejo e que conheço se transforma em algo diferente, mais belo mais animador e com mais alma. Esses dias normalmente são ao fim-de-semana e aos feriados, algo que se passa nos dias anteriores abre-me as portas da perceção, e de repente há mais harmonia.
Recentemente voltou a acontecer, acordei em esforço, tive medo de abrir a janela para deixar entrar a luz, o sol e temperatura prometidas para o fim-de-semana levaram-me a ser prudente quanto à quantidade de luz que estava disposto a aceitar. Após o choque inicial enfrentei a luz e ganhei coragem para enfrentar o dia, tinha de estudar mas antes disso tinha de ir recuperar algo deixado na casa do N..
Depois de todas as cerimónias que estes dias exigem, consegui sair corajosamente de casa, tinha a missão de ir a casa do N., o que implicava atravessar a Madragoa. Mal coloquei o pé na rua senti que era um dia especial, o que os meus sentidos captavam era diferente do dia-a-dia amorfo. Desci a rua de São Bento, enquanto isso tudo me parecia mais belo, tanto o sol, como a rua como a tranquilidade que ela transmitia, o caminhar das pessoas sem pressa como se não fossem a lado nenhum, a calçada brilha sem vergonha da sua irregularidade e brinda as ruas com parte da sua luz.
Ainda não é hora de almoço e na Nannarella já há fila para os gelados, olho com outra atenção para a exposição nas janelas do prédio em frente ao jardim da Assembleia da República, nos outros dias são só uns retratos cinzentos a tapar as janelas de um prédio quase devoluto, continuo, passo o Jardim das Francesinhas até chegar à Rua do Machadinho, a partir daqui e até à Rua das Trinas todo o ambiente me faz lembrar a infância na aldeia, senhoras à janela a falarem de um lado para o outro da rua, miúdos a jogar futebol, música popular que sai pelas inúmeras portas abertas e que acompanha o cheiro da comida de sábado, as pessoas tratam-se por “meu amor” e “querida”, um homem assobia uma qualquer música para uma arara enjaulada à porta do café de esquina. Sinto-me seguro, como se origem estivesse apenas a poucos metros de distância. Lisboa não é uma aldeia, é uma cidade moderna e até bastante cosmopolita, mas tem em muitos bairros os encantos de outras eras parados no tempo, esses mesmos encantos que em muitas aldeias do mundo rural português já não se encontram.
Estes dias são bons para entender o que me rodeia, este abrir das portas da perceção humaniza-me mostra-me o quanto o meio é simpático comigo, só tenho de estar atento e não percorrer as ruas sempre pelo mesmo lado.