quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Poesia a granel

Contrariedades

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
    Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
    E os ângulos agudos.

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
    E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve conta à botica!
    Mal ganha para sopas...

O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
    Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais uma redacção, das que elogiam tudo,
    Me tem fechado a porta.

A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A Imprensa
    Vale um desdém solene.

Com raras excepções, merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e a paz pela calçada abaixo,
Um sol-e-dó. Chovisca. O populacho
    Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
    Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingénuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
    Deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua "coterie";
Ea mim, não há questão que mais me contrarie
    Do que escrever em prosa.

A adulaçãao repugna aos sentimento finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exactos,
    Os meus alexandrinos...

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
    E fina-se ao desprezo!

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
    Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
    Impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a "réclame", a intriga, o anúncio, a "blague",
E esta poesia pede um editor que pague
    Todas as minhas obras...

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe a luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
    Que mundo! Coitadinha!


Cesário Verde

Poesia a granel

A Leitura

Todo o sangue e a
ferocidade são
demasiado fogo
para o corpo

São a vida sobre
a prosa e o abismo
demasiado amada
e ardida

São demasiado
fogo para vivos
fogo com a vida
aprendido

Com a vida como
se a morte viesse
e o fogo aprendido
se perdesse

São a dicção agreste
e extrema como se
a vida se perdesse
e nada se dissesse

São o limite e a condição
a tempestade a segurança
demasiado fogo e
demasiada confiança



Gastão Cruz

domingo, 7 de setembro de 2014

Poesia a granel

Canção do Rei de Tule (III)

Era uma vez um bom rei
Em Tule, essa ilha distante,
Ao morrer, deixou-lhe a amante
Um copo de oiro de lei.
-
Era um copo de oiro fino
Todo lavrado a primor;
Se fosse o cálix divino
Não lhe tinha mais amor.
-
Seus tristes olhos leais
Não tinham outra alegria:
E só por ele bebia
Nos seus banquetes reais.
-
Chegada a hora da morte
Põs-se o rei a meditar
Grandezas da sua sorte,
Seus reinos à beira-mar.
-
Deixava um rico tesoiro,
Palácios, vilas, cidades;
De nada tinha saudades,
A não ser do copo de oiro.
-

Antero de Quental, versão do Fausto de Goethe

Poesia a granel

Há palavras que nos beijam

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes.


Alexandre O'Neill


sábado, 6 de setembro de 2014

Poesia a granel

Shelley sem anjos e sem pureza,
aqui estou à tua espera nesta praça,
onde não há pombos mansos mas tristeza
e uma fonte por onde a água já não passa.

Das árvores não te falo pois estão nuas;
das casas não vale a pena porque estão
gastas pelo relógio e pelas luas
e pelos olhos de quem espera em vão.

De mim podia falar-te, mas não sei
que dizer-te desta história de maneira
que te pareça natural a minha voz.

Só sei que passo aqui a tarde inteira
tecendo estes versos e a noite
que te há-de trazer e nos há-de de deixar sós


Eugénio de Andrade

Poesia a granel

Das  «Folhas Novas»

Aqueles com fama de honrados na vila
Roubaram-me todo o bragal que ainda tinha
Botaram-me lama nas galas de um dia
E a roupa de cote puseram-ma em tiras
                Nem pedra deixaram lá onde eu vivia;
Sem lar, sem abrigo, morei nas pocilgas,
Ao léu como as lebres, dormi nas campinas;
Meus filhos… meus anjos… que tanto eu queria,
Morreram, morreram da fome que tinham!
                Fiquei desonrada, murcharam-me a vida,
Fizeram-me um leito de tojos e silvas,
E entanto as raposas de raça maldita
Tranquilas em leito de rosas dormiram.

- «Salvai-me, ó juízes!» gritei… Tontaria!
De mim ‘scarneceram, vendeu-me a justiça.
«Bom Deus, ajudai-me», gritei, gritei inda…
Tão alto que estava, o bom Deus não me ouvia.
                Então, qual a loba, doente ou ferida,
De um salto, com raiva peguei na foicinha,
Rondei devagar… Nem as ervas sentiam!
A lua escondida, a fera dormia
Com os seus companheiros na cama macia.
                Olhei-os com calma, e as mãos estendidas,
De um golpe, um só golpe!, deixei-os sem vida.
E au lado, contente, sentei-me das vítimas,
Tranquila, esperando p’la aurora do dia.
               
Então…então sim, se cumpriu a justiça:
Eu neles, e a lei, foi a mão que os ferira.

Rosalía de Castro

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Poesia a granel

CAFÉ DO HORTELÃO II

É quase um regresso. A salamandra
está no mesmo sítio, a cadela
ainda não morreu. Mas espera-me
um sorriso de viúva que em vão
procura ser igual. Não vou ter de acordar
ninguém para me servir um brandy,
uma cerveja, o vinho que arrefece
no esquife de alumínio ao lado do balcão.

O café, pequena taberna, já só abre
à tarde, por algumas horas, obedecendo
mal, como pode, à tirania do hábito.
Pergunto-me o que farão agora
os meus silenciosos amigos,
a breve confraria de álcool
que apostava comigo na infâmia.
Nunca mais vi o Pintéve, o Falcão,
desconheço onde bebem,
mas tenho a certeza que bebem.
Uma vez faltou a luz e ficámos
toda a noite em silêncio de La Tour,
encostados a um candeeiro de petróleo.

Doutra vez faltou a vida,
senhor Hortelão, a vida. Quem
pudesse pintar a ausência.



Manuel de Freitas

Poema

A estupidez do labirinto

Vivo estupidamente
um dia de cada vez,
sempre erradamente
e sempre cortês.

Venço preconceitos alheios,
em vinagre conservo os meus,
ainda são os primeiros
e esperam o julgamento de deus.

Sigo no labirinto,
Enquanto se esgota a esperança,
Coma vida e copo de tinto
Ao ritmo de uma qualquer dança.

Um dia me emendarei
Ainda não sei quando vai ser,
Talvez me venha a esquecer,
E errando viverei.



M.M. 

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Poesia a granel

Não desfazendo

Nada do que existe
nos cai do céu na cabeça.
Nem a chuva, embora pareça:
até ela estava cá em baixo a existir
antes de ser chuva e cair!

Mais ou menos perfeito ou imperfeito,
tudo o que existe foi feito
e, antes de ser feito, desfeito.

Com água, luz e vento
a Terra se foi fazendo;
o distante Sol está ardendo
há milhões de anos e morrendo.
O lavrador deitou à terra a semente,
o operário fez a enxada e a charrua,
o cantor canta no palco, o actor actua,
o inventor inventa o inexistente.

Foi feita a cama,
feito o pijama,
com fogo e esforço
se fez o almoço.
Quem faz agora este alvoroço
toda a tarde a brincar e a correr
enchendo de alegria a casa inteira?
Oh, que é feito do tempo da brincadeira 
em que não havia nada que fazer?


Manuel António Pina

Poesia a granel

Acorde Perfeito

Oh, os ramos do verão –

onde as cigarras
ou a cal

queimam
lentamente o coração.


Eugénio de Andrade