quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Poesia a granel

Alegoria do Mundo na Passagem de Arnaldo de Villanova

Ouro trigo leão e prata e crina
te esperam sob o vaso menstrual
Separarás primeiro a água e a mina
Porque a água não é um mineral

No coágulo te espera areia fina
e sob a areia planta sideral
que ao manto do Rei Verde se combina
porque a Planta não é um vegetal

Ao homem cabe o Ouro de buscá-lo
E a sua cria morta ou imortal
tirá-la-às do ventre de cavalo
porque o Homem não é um animal

E se o espelho de cobre te fascina
se te aparece o Monstro do Umbral
que à ígnea terra o atro abismo ensina
e nas trevas afunda o Bem e o Mal

Reduz expurga fende e ilumina
e com espada de fogo talha e inclina
porque o Fogo não é o seu sinal



Mário Cesariny

Poesia a granel

Soneto

Tempo das cerejeiras agressivas
A avançar pelo meu quarto dentro.
Velho tempo das noites explosivas
Em que o sangue crescia como o vento!

Tempo - aproximação das coisas vivas,
Do seu hálito doce, violento.
Tempo - horas e horas convertidas
No ouro raro e inútil dum lamento...

Tempo como uma ferida no meu lado,
Coração palpitando sobre a lama.
Tempo perdido, sangue derramado,

Resto de amor que se deixou na cama,
Horizonte de guerra atravessado
Pelo corpo audacioso duma chama.


Alexandre O'Neill

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Texto

"O SARAIVA

Havia em tempos, no Porto, um rapaz estudante, vindo das províncias do Norte, chamado Saraiva. Este rapaz tornara-se notável entre os companheiros pela certeza da própria perspicácia e a sua igual certeza de seus talentos de declamador. A cada frase, por simples que fosse, que lhe parecesse envolver uma mentira, tomava a mentira como dirigida inutilmente contra a rocha da sua esperteza; e, levando o indicador direito à pálpebra do olho direito, descia-a, no gesto dos alacres, e dizia ao interlocutor, em aviso e ameaça alegre, «Eu sou o Saraiva!» E o outro ficava sabendo que o não conseguira enganar. O indicador erguia-se livre.
Esta ciência certa, considerada pelos outros rapazes como ridícula em si-mesma, levou-os a combinar, servindo-se da preocupação que o Saraiva tinha de declamador, uma cena cómica, destinada a, de vez, pôr o Saraiva em salmoura social. Sabendo o horror do ridículo, que estava latente naquela constante preocupação de que não era enganado, combinaram com várias raparigas das suas relações, de boas famílias e condição decentíssima, uma sessão em casa dos pais de umas d'elas, para a qual convidariam o Saraiva para declamar. E estava combinado que, apresentado o Saraiva e convidado a mostrar seus dotes de declamador, eles fossem, por fim, reconhecidos com uma gargalhada geral. D'esta, fixaram bem, o Saraiva se não escaparia, e ficariam pagos de tanta irritação de certeza.
Expuseram ao Saraiva que havia várias senhoras que gostariam de o ouvir declamar, pois lhes constara o que valia na matéria, e com ele estabeleceram que o apresentariam em casa d'essas senhoras, podendo ele aparecer, em tal noite e a tais horas.
Grato, o Saraiva acedeu e a combinação ficou feita. Sucede, porém, que, chegado a casa, começou a meditar no convite, e, desde logo, a desconfiar d'ele. «Ali há coisa», pensou o Saraiva. E, sozinho, diante do espelho, levou o indicador direito ao olho direito, no gesto baixante da esperteza, «Mas eu sou o Saraiva!» apontou para si mesmo.
E meditou, «Que diabo será a partida?». Não tardou que descobrisse. Tratava-se de encher uma casa qualquer de uma quantidade de meretrizes, dispostas com aparência de senhoras e meninas, e de o convidar (a ele Saraiva!) para ir fazer diante d'elas o papel de recitador. Conclusão lógica, conclusão natural. E o Saraiva tomou mentalmente as suas precauções.
Chegou a noite, e chegou o Saraiva. E, junto com os vários camaradas, foram dar à casa onde estavam reunidas as senhoras todas que os esperavam. Para entrada e deslumbramento, os apresentantes, aberta subitamente a porta da sala, que se revelou cheia de senhoras, apresentaram, «Minhas senhoras, o sr. Saraiva!», com o ar de quem apresenta um dos homens célebres do mundo.
Então o Saraiva, alacre, deu um pulo para o meio da sala, e braços abertos, gritante e alegre, bradou para as senhoras todas, «Eh, putedo!»
E depois, voltando-se a rir para os apresentantes lívidos, inclinou a cabeça e levou à eterna pálpebra direita o eterno indicador direito, «Vocês esqueceram-se que eu sou o Saraiva»...

Moralidade
1. Não ser Saraiva.
2. Na dúvida ser Saraiva, porque aqui o Saraiva foi o parvo e os outros é que ficaram atrapalhados.
Quando uma nação crê firmemente em si mesma, humilha os outros ainda quando se engana e é ridícula. Na dúvida, mais vale ser Saraiva.
Porque é preciso não esquecer o resultado prático de tudo isto. As raparigas ficaram insultadas, os rapazes ficaram envergonhados: quem ficou vencedor foi o Saraiva."

Fernando Pessoa

Citação

“Every reader, as he reads, is actually the reader of himself. The writer's work is only a kind of optical instrument he provides the reader so he can discern what he might never have seen in himself without this book. The reader's recognition in himself of what the book says is the proof of the book's truth.” 


Marcel Proust

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Citação

“I want to stand as close to the edge as I can without going over. Out on the edge you see all kinds of things you can't see from the center.” 

 Kurt Vonnegut, Player Piano

Crónica


A Agência Funerária Salvador

Há poucos dias fui surpreendido com a morte de alguém próximo e que me foi próximo durante muitos anos. Não quero escrever sobre isso, mas sobre o que a ocorrência suscitou.
O funeral da pessoa que morreu, tal como a maioria dos funerais lá na aldeia, foi realizado pela Agência Funerária Salvador com sede em Ponte de Lima, no pleno Alto Minho ultracatólico. O Sr. Salvador é o dono da Funerária a que dá nome. Sem nenhuma lucidez da nossa parte isto até pode escapar, mas a mim não me escapa há anos.
Em resumo, o ‘problema’ é que há uma Agência Funerária Salvador, ou seja, a leitura das três palavras olhando ao que significam, formam uma dupla ironia, primeiro porque o Salvador não salva mas enterra literalmente pessoas, depois pela visão católica da morte como salvação, o Sr. Salvador antecipa-se à salvação apregoada pela igreja Católica.
Isto levanta muitas questões acerca do Sr. Salvador e da origem do seu nome.
Como primeiro cenário imagino que o Pai do Sr. Salvador era já proprietário de uma Agência Funerária que depois legou ao filho. Se isto fosse verdade tinha que lhe tirar o chapéu pelo golpe de génio, dar o nome de Salvador ao filho para ele ser um futuro empresário do ramo é um exemplo do melhor marketing que existe. Isto pode ser só a minha imaginação a alimentar-se de humor negro, pode ser que o Sr. Salvador seja um predestinado e as pessoas enterradas por ele levam logo o passaporte carimbado para a salvação, não tendo estes de fazer fila para o São Pedro. Ou ainda, o Sr. Salvador é o tipo de empreendedor que o atual governo gosta, ou seja, um dia ficou no café até mais tarde, bebeu mais do que a conta e acabou por ter um ataque de lucidez e exclamou: “Epah, eu chamo-me Salvador, com este nome e nesta região o meu futuro é o negócio funerário”.
Não sei qual destas situações, ou outra que não previ, desencadeou o negócio funerário do Sr. Salvador, mas já deixei passar tempo demais sem ter ‘denunciado’ este caso que me parece ser uma das melhores ironias que Ponte de Lima tem para oferecer.

Estado do Tempo

Durante muito tempo ninguém quis saber nada, em muito pouco tempo muita gente quer saber tudo.


terça-feira, 5 de agosto de 2014

Citação

“[They] agreed that it was neither possible nor necessary to educate people who never questioned anything.” 

 Joseph Heller, Catch-22

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Poema

A lucidez da manhã

Acordei e estavas ao meu lado,
o mundo moderno trouxe-te até mim,
penso no tempo que passamos juntos,
e na estranha efemeridade da vida.
Sei que te tenho perdida,
por culpa tua e por culpa minha.

Citação

“Sentia-me contente por não estar apaixonado, por não estar contente com o mundo. Gosto de estar em desacordo com tudo. As pessoas apaixonadas tornam-se muitas vezes suscetíveis, perigosas. Perdem o sentido da realidade. Perdem o sentido de humor. Tornam-se nervosas, psicóticas, chatas. Tornam-se, mesmo, assassinas.”

Charles Bukowski, Mulheres

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Citação

"Nunca desejei ter um belo carro ou qualquer outra coisa a não ser eu mesmo. Posso ir para a rua com as mãos nos bolsos e sinto-me um príncipe."

Albert Cossery