quarta-feira, 29 de abril de 2015

DEBAIXO DE GUARDA-CHUVAS PRETOS



Os sapatos de sola nova escorregavam no passeio. 
Aquele ambiente húmido amolecia o corpo, além do espírito. 
Era como se as pernas fossem de borracha, como se tivesse dois pés esquerdos.
Ah…mas a moleza que sentia...parado na esquina, os braços escorregando ao longo do corpo…a chuva não parava. 
Quando o dia acorda assim, sem motivo, de nevoeiro fechado e paredes suadas, de olhar indiferente sobre nós, o seu peso faz-nos andar dobrados sobre o estômago, de rostos congestionados pela posição. E andamos, e andamos, e andamos…e andava e andava…
Só podia esperar pela primavera e esta chegou e então ficou sem força para sair. 
Tanta luz nas ruas deixava-o com um complexo de inferioridade, que fazia com que não desse um passo sem esfregar os olhos com as mãos, para esconder a cara, fingindo ser poeira o que o incomodava.

Claro que então tropeçava com toda a gente, que lhe chamavam cego, trenguinho ou lhe perguntavam se tinha sono. 
Sempre havia a possibilidade de entrar num café e beber uma cerveja, mas também eram já poucos os cafés de que gostava. 
Cheios de estudantes que se diria que estudam todos o mesmo curso porque a conversa é toda igual. 
E de novo nas ruas tanta gente enjoava, eram trabalhadores e futebol ou estudantes e namoros ou simplesmente secretárias de meia-idade que empestavam os passeios de cara amuada. 
Podia experimentar a biblioteca mas não tinha B.I. e não se lembrava do número de cor e além de tudo, o livro que queria de certeza não estava lá.

domingo, 19 de abril de 2015

Crónica dos anos perdidos ou das calças rotas!‏

Ai os belos 30!
Como eu era feliz então, fútil mas feliz!
Saía para jantar, saía para dançar, todas as noites (menos às sextas!)
Comprava 4 pares de sapatos, por estação, Pablo Fuster, by the way, a 12 contos cada um.
Tinha casa própria
Tinha moto
Enfim
Belos anos 90
Depois, tudo começou a descambar
A começar por mim, depois o mundo e por fim este Pais
Sim, porque primeiro fui eu, depois a merda da globalização e a seguir o Euro e esta Europa reles e a puta que os pariu
Ah que saudades do Escudo, sim um verdadeiro “escudo” contra a falácia da globalização
Que bom era ser português, típico, português, característico, genuíno, altamente desenrascador da vida
P’ra que serve a globalização?
Vemos nesta Capital do outrora  Império, tuk tuk’s conduzidos já pelos originais motoristas – indianos – fica assim Lisboa, uma qualquer Goa exótica, mas esquecida do mundo
Oh tempo volta p’ra trás, qualquer tempo passado no Escudo foi melhor
Barbas cortadas à régua e esquadro, bonecos em série duma qualquer fábrica de gnomos na Lapónia
Star-ups manhosas em vãos de escada
Estabelecimentos que tanto vendem sangria, servem um cozido à portuguesa ou alugam-te uma bicicleta
Este é o tempo das palavras sem acentos, despojadas dos “c” que não se lêem, mas deviam
Este é o tempo das lojas das famosas sardinhas em lata, cujas fábricas o senhor come-bolo-rei-mor levou à falência
É o tempo do brick-a-brack de mau gosto , com galos de Barcelos importados directamente da Tailândia e nossas Senhoras-de-Fátima chinesas com os mamilos de fora
É o tempo das bandeiras ao contrário, cosidas na China, por catraios com ranho
É o tempo da valente cagada!
Ai ai os belos 30 anos!
(K.G.)

domingo, 12 de abril de 2015

Texto - A Bulgária e o “grande-irmão”

A Bulgária e o “grande-irmão”

A Bulgária é para mim um país inesquecível. Nunca lá estive, e as referências de amigos e conhecidos que por lá passaram nunca me deixaram a sonhar com a sua costa do mar negro e muito menos são razão suficiente para me lembrar todos os dias desse país. Acontece que sempre que tenho sede, ao ter de beber algo para satisfazer essa necessidade, acabo por me lembrar da Bulgária, isto porque os meus copos do IKEA têm escrito no fundo “Made in Bulgaria”.
Começo a sentir que os meus copos são os famosos “telescreen” do 1984 e me estão a observar, mas neste caso apenas a observar o que eu bebo e em que quantidade.

Lamentável.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Texto

As pessoas, a realidade, os limites e a mudança.


Há momentos em que por qualquer combinação de fatores que não percebo, dou por mim a pensar na minha vida, como ela é, porque é assim e porque não é diferente. Será que não é diferente apenas porque eu não quero? Controlo mesmo lucidamente e de plena capacidade todas as variáveis que influenciam o que sou?
Começando pela herança genética ou a “programação genética”, é primeira camada do que somos: o “hardware”. É algo que está fora do nosso controlo, herdamos das famílias dos nossos pais biológicos, com todas as virtudes e defeitos que os genes carregam, são os primeiros fatores de limitação. Podemos minorar os limites que eles nos impõem conhecendo o histórico familiar, mas daquilo que percebo da matéria não é muito, dificilmente conseguimos contrariar. Sobre genética sei pouco ou até nada sei, e assim sobre a composição genética quero apenas destacar o fator involuntário da mesma, não a escolhemos, é uma consequência com a qual temos de viver.
Outra dimensão importante da nossa construção é a educação. Até sair da adolescência a nossa educação é ministrada pelas pessoas que nos rodeiam, normalmente, e de uma forma restrita a família. A família acaba por nos formar à imagem da mesma, com o mesmo código, para que a representemos na sociedade com os valores, crenças, moral, e outras dimensões educacionais. Esta ação educativa influência muito aquilo que nós vamos ser e podemos ser, surgem aqui também alguns limites à nossa possibilidade de ação futura.
O plano educacional é também idealizado olhando para resultados históricos, as famílias assim tentam incutir nas gerações seguintes os fatores de sucesso do passado e do presente, que são os momentos que conseguem observar, contudo, esses fatores podem no futuro já não ser tão relevantes ou podem até ser totalmente irrelevantes. Isto demonstra a dissonância entre valorização de certos fatores educacionais no tempo e até à impreparação para o sucesso, desadequação social face à ordem social vigente e dominante a cada época. Ainda, quando as famílias ou pais educam os descendentes projetando-se neles, criam expectativas quanto ao sucesso dos filhos, há uma programação ainda mais vincada, os filhos vão aperceber essas expectativas como objetivos a cumprir, o que caso não aconteça gera frustração. Aparece aqui a criação de ideias na mente dos outros através dos sonhos, o tema do “Inception”.  Analogamente, muito da educação que tivemos foram “inceptions” de alguém próximo e nós, a partir delas criamos as ideias que essas pessoas queriam que nós criássemos, para nosso bem, convencemo-nos que são originalmente nossas sem ter de passar pelo desconforto de ter de pensar muito no assunto.
As limitações que nos surgem da educação podem ser contrariadas por nós, mas não todas. A parte da educação que nos é ministrada quando somos um “dependente natural” legalmente definido, só nos podemos libertar da educação familiar com atos de rebeldia, e a maior parte das vezes quando acontece são atos irresponsáveis pois não são lúcidos e não por revolta contra conteúdo mas contra a forma. Só com tempo e observância dos resultados da educação passada é que surge a capacidade critica e lucidez que nos dá poder para decidir romper ou afastar-nos daquilo que nos é imposto. Contudo, quando isso acontece parte da nossa formatação educacional já está cumprida.
Tivéssemos nós a possibilidade de desconstruir aquilo que somos, eliminar todas as influências nos vinca, libertarmo-nos de toda ordem social e da sua influência sem nos tornarmos selvagens. É um exercício impossível na sua totalidade, mesmo em abstrato, o pensamento em tal ideia já tem a contaminação daquilo que eu sou e todas as influências que tive até hoje. Mas parcialmente podemos desconstruir muitos aspetos da nossa vivência que nos limitam. Lembro-me a este respeito do “American Beauty”, a evolução das personagens e a “camisa-de-forças” em que cada uma delas vive. Só uma delas acaba por sentir felicidade pois desconstruiu parte do que foi durante a vida, sem nunca o ter querido ser conscientemente. É dramático, pois a personagem que sente a felicidade é assassinada como se aquela felicidade fosse fatal e impossível na atualidade do “mundo ocidental”.
Após a desconstrução seria o momento da reconstrução, mas se a desconstrução completa é impossível a reconstrução também o é, primeiro pela impossibilidade de existir desconstrução completa e depois, em termos abstratos falha pela mesma razão da desconstrução: a contaminação do que sou atualmente. Podemos sempre mudar aspetos da nossa vida mas dentro daquilo que nós conhecemos, o que não conhecemos e que ignoramos não é fator de mudança ou de reconstrução, a reconstrução e a mudança acabam por ser alterações de rumo no conhecido e que podem levar-nos para uma vivência mais conscientemente suportável.