quinta-feira, 31 de julho de 2014

Crónica

O Campo das Cebolas

Este local da cidade de Lisboa, por onde me vou perdendo há quase quatro anos, não tem características arquitetónicas, antes características pitorescas, de alma, uma alma como uma aura construída por quem por ali passa e pára.
Sou um dos que por lá param, tal como alguns amigos. É um local próximo do trabalho, onde há um restaurante aceitável com preços bons, e onde se pode beber uma cerveja a preços de 1995 sentado numa esplanada que não é má.
Começando a enquadrar cada grupo de frequentador do local, considero que eu e os meus amigos fazemos daqueles que trabalham por perto, e que, por oportunismo, lá emprestam alguma da sua disposição ao local, sendo clientes do Reviravolta.
Nos cafés e restaurantes do lado poente, almoçam e jantam Ministros, Secretários de Estado, Diretores-Gerais e funcionários públicos que, em topo de carreira ou a rondar o topo, passam por lá a correr ou em bicos de pés sem ver, sem ouvir, sem sentir nada mais do que o que levam no estômago; não escapam, no entanto, a ser catalogados e incluídos na ‘fauna’ diversa, desfocada e pouco percetível.
Depois há os habitantes do bairro de Alfama, principalmente os idosos, são sempre os mesmos, são assíduos, por mim podem lá estar sempre, como estátuas, eles são a primeira camada de alma do local, ouvem-se conversas de circunstância, desabafos loucos, o relato do Correio da Manhã e indignações infundadas, mas sempre com aquele ar de poder de quem domina o terreno, com a segurança conhecedora do chão que pisam, olham-nos com desprezo e hostilidade, como se fossemos parte de algo que eles odeiam. Não aparentam ser clientes de ninguém, mas antes uma brigada de fiscalização do local.
Outros assíduos são os indigentes, não só devido ao facto de à noite servir por ali a sopa dos pobres, mas também porque parte do jardim do lado nascente tem boas sombras e é razoavelmente confortável, alguns deles discutem pela colonização das sombras e das árvores, comem nêsperas e figos das duas nespereiras e da figueira existente no jardim, um deles guarda os pertences em cima de uma árvore como se a mesma lhe desse a segurança de um cofre.
Há também os ciganos, sempre a rodear a Pastelaria Marítima, pitorescos, tanto o modelo tradicional feirante como o modelo de penteado à jogador de futebol, ocupam o lugar em paz tácita com os indigentes, vendem óculos de sol e relógios de contrafação mas o negócio principal são os orégãos e outras ervas aromáticas como se fosse canábis, devem ser o maior exportador nacional deste produto via vendas aos turistas. Gritam uns com os outros, nunca se percebe se estão zangados ou se aquele tão de voz e brutidão é normalidade reinante entre eles. Também são assíduos, mas se aparece um par de polícias teletransportam-se, mas voltam, a base é ali, é um ponto estratégico para o negócio das ervas aromáticas devido aos muitos turistas que por lá passam.
Aquela encruzilhada que mais parece uma porta entre várias dimensões, uma delas é constituída por turistas, passam por lá os turistas que vão para Alfama, os que vão para a Sé, os que vão para o Castelo, os que vão para o Museu do Fado, os que vão para o Terreiro do Paço e os que vão para Santa a Apolónia e os que vem desses sítios e procuram outro ponto que o guia lhe indicou no mapa. De vez em quando lá vem mais um grupo de turismo selvagem com um guia aos gritos na frente, ou então em segways, comem rissóis e bebem vinho branco fulminantemente sem nada deixarem para as formigas e seguem. Há também os que ficam, menos frequente, almoçam sentados num banco de jardim, é o turismo mais racional, ou pelo menos mais racional para mim porque é o tipo de turismo com que me identifico. Fazem o papel do observador curioso, o que se deixa estar e observa a dinâmica do sítio, ou do incrédulo, que não acaba a bebida e foge por não aguentar a aparente insegurança do local.
Outro grupo tipo, são os que se deslocam ali pela Taberna Moderna, lá ficam altivos e a olhar de cima na esplanada, só ali vem por causa do moderno e famoso gin, talvez pela comida, talvez para dizerem que ali vieram beber gin e jantar. São de vista sensível, o segurança da Taberna Moderna queixa-se da Pastelaria Marítima e da aparente má índole dos seus clientes, talvez também se queixe dos do Reviravolta e de mim, diz trazem mal ambiente ao local. Não concordo, parece-me que se no Campo das Cebolas há mal ambiente o mesmo é criado pelos clientes e funcionários da Taberna Moderna, num teste de conjuntos de fruta são uma lata de conserva de ananás.
No jardim do lado poente os miúdos jogam à bola, às vezes a bola entra porta dentro do Reviravolta, ouvem-se pratos e copos a espedaçarem-se no chão, clientes com a gravata suja a reclamar, as vozes crispadas do Sr. Batista e do Sr. Fernando, o miúdo mais leve foge, o mais pesado leva o sermão por inteiro sozinho, recupera a bola encolhe os ombros e desaparece.
Passa um tipo com um ar de louco, olhos mortiços e olhar lento, parece ganzado, pede cigarros e lume, diz que gosta de homens e investe sobre os mesmos que por ali param com tentativas apalpões e palavras doces, quando isto acontece gosto que o indigente que colonizou a árvore esteja por perto, é especialista a afastá-lo oferecendo-lhe apenas daquilo que o tipo diz que gosta, foge numa corrida manca desequilibrada para a esquerda e também desaparece.
Quando se ouve a pandeireta sabemos que o Sr. Manuel, natural de Moreira do Lima - Ponte de Lima, está por perto, ele lá aparece, chapéu ao lado, voz enrolada, e com 50 cêntimos temos 30 minutos de refrões de canções populares com timbre gritado e esganiçado, é preciso pedir para parar quando volta ao primeiro tema mas insiste em cantar, agradecemos e dizemos que temos de ir embora.
Este local abençoou também a união do Sr. Fernando, empregado de mesa e sócio do Reviravolta, com uma ex-arrumadora de carros no parque da EMEL que existe em frente, algo improvável mas ali aconteceu. A S. foi literalmente salva do limite da marginalidade por alguém aparentemente estável o que aos meus preconceituosos olhos seria improvável
O Campo da Cebolas é uma democracia popular estável e é um faroeste em guerra interrompida por um acordo de cessar-fogo. Agrada-me o equilíbrio, a diversidade, e a insanidade que o local transmite quando ao mesmo tempo todos estes intervenientes por lá se cruzam. Em toda a minha vida nunca estive num lugar tão insano, parece-me um hospício ao ar livre e de portas abertas onde poucos se podem salvar. 

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